Bem no final da década de 70 começaram a pipocar na zona sul do Rio de Janeiro os primeiros grafites-não-identificados: uma verdadeira batalha nonsense entre os dizeres LERFÁ MÚ e seu “rival” CELACANTO PROVOCA MAREMOTO. Provocando a curiosidade dos mais atentos, surgiam enigmaticamente nos locais mais improváveis, no verdadeiro espírito street, emergindo do rescaldo das pichações políticas contra a ditadura que predominavam até então.
Qual seria o verdadeiro significado daquelas palavras? Como teasers, geravam as especulações mais bizarras nas conversas de bar e mais tarde na imprensa, enquanto os dois autores do LERFÁ MÚ e sua trama estavam rolando de rir. Num clima meio Cheech&Chong, dividiam-se entre a PUC, o estúdio de fotografia e serigrafia no qual eram sócios, os intermináveis ensaios de rock e música blue grass, e os “ataques” clandestinos às paredes da cidade.
Entrando na faculdade de design aos 17 anos, pós-adolescente, fiquei alegremente chapada ao encontrar aquelas duas figuras inenarráveis, que iam ampliando em escala viral o círculo de domínio urbano - com o auxílio luxuoso de uma crescente gang de amigos adeptos e suas latas de spray e canetas pilot. Eram agentes provocadores da melhor estirpe, mais que tudo por uma razão inata: atitude. Dessas pessoas que, mesmo involuntariamente, meio por molecagem, invocam questionamentos, geram polêmicas, disparam a primeira pedra do efeito dominó. Neste caso, não meros pixadores, mas os primeiros e legítimos grafiteiros do Rio.
Os criadores do LERFÁ MÚ, Guilherme Jardim e Rogério Fornari, eram fotógrafos e músicos – entre outras coisas - e eram assim: divertidíssimos. Aqueles dizeres, mera corruptela do private joke que invertia sílabas na gíria de iniciados do bairro, dizendo em código lerfá-mú lhobagu para falar “vamo fumá um bagulho?”, vinham sendo ingenuamente repetidos por autoridades e pessoas públicas, disseminando o uso da cannabis sem nenhuma intenção - para a alegria dos grafiteiros e doidões locais.
E insuflado pela crescente notoriedade anônima que aquele simples anagrama assumia, LERFÁ MÚ partiu para a disputa de espaço com o outro grafite, o CELACANTO PROVOCA MAREMOTO, este derivado de uma manchete citada num episódio de Nacional Kid, o seriado cult japonês, pai de Jaspion e avô dos Power-Rangers.
Em 1981, pegando ônibus num belíssimo dia de sol, encontrei Rogério, que se auto-intitulava “freak” (e direis: como não?) portando um soturno guarda-chuva preto. Diante do meu espanto, ele riu e explicou: “- é a senha”.
Fiquei na mesma, até que ele contou que nas internas, há quase um ano, CELACANTO vinha provocando LERFÁ-MÚ trocando desafios sob forma de grafite nas paredes dos banheiros masculinos da PUC, onde ele também estudava. Depois de muitos acordos, travados por escrito e sem se verem, marcaram um misterioso encontro num dos cruzamentos mais barulhentos e movimentados do Rio: esquina da Av. Nossa Senhora com Figueiredo de Magalhães, em plena Copacabana. Para se identificarem mutuamente, nada como improvável guarda-chuva.
Nunca soube o resultado político deste duelo, mas sei que Rogério, como bom freak que era, partiu anos depois para uma vida alternativa num sítio no interior de Minas. Em estilo compatível criou uma banda de rock e tratou de arrebatar a rádio local com suas composições gravadas num porta-estúdio, abiscoitando todos os festivais de música das proximidades. Sempre lerfando mú, é claro.
Já o Guilherme era a personificação da contracultura com um mix pós-moderno: enquanto sabia tudo de Jimi Hendrix, Johnny Winter e Rolling Stones – motivo de meu fascínio – já pilotava um TK 85, um computador pessoal pré-histórico, ouvindo Devo e Kraftwerk ou jogando space invaders. Os amigos que o conheceram – esta quem vos narra entre eles, já inoculada da technomania gamer por contágio - sabem que ali estava um transgressor nato, criativamente embebido na cultura pop. Em outras palavras, um sujeito da pá-virada.
Depois de um tilt, o tal computador provocou até a composição de “Choveu No Meu Chip”, nosso sucesso meteórico com a banda ELETRODOMÉSTICOS*, já nos anos 80, onde o mesmo Guilherme era guitarrista e eu, tecladista num Korg Poly-800. Muito antes dos laptops, smartphones e outros gadgets, a canção de inspiração visionária – agora é fácil ver – narrava uma verdadeira tragédia informática da perda de todos os arquivos, profetizada em hilários playbacks new wave que fazíamos no programa do Chacrinha, Xuxa e afins enquanto o público ainda mal sabia o que afinal era um chip. Um grafite musical, a mesma atitude teaser – e o agente provocador entrava novamente em ação. Mas isso é outra lenda urbana.
*Almanaque dos Anos 80, pág. 139, em “Os Intocáveis”.
Qual seria o verdadeiro significado daquelas palavras? Como teasers, geravam as especulações mais bizarras nas conversas de bar e mais tarde na imprensa, enquanto os dois autores do LERFÁ MÚ e sua trama estavam rolando de rir. Num clima meio Cheech&Chong, dividiam-se entre a PUC, o estúdio de fotografia e serigrafia no qual eram sócios, os intermináveis ensaios de rock e música blue grass, e os “ataques” clandestinos às paredes da cidade.
Entrando na faculdade de design aos 17 anos, pós-adolescente, fiquei alegremente chapada ao encontrar aquelas duas figuras inenarráveis, que iam ampliando em escala viral o círculo de domínio urbano - com o auxílio luxuoso de uma crescente gang de amigos adeptos e suas latas de spray e canetas pilot. Eram agentes provocadores da melhor estirpe, mais que tudo por uma razão inata: atitude. Dessas pessoas que, mesmo involuntariamente, meio por molecagem, invocam questionamentos, geram polêmicas, disparam a primeira pedra do efeito dominó. Neste caso, não meros pixadores, mas os primeiros e legítimos grafiteiros do Rio.
Os criadores do LERFÁ MÚ, Guilherme Jardim e Rogério Fornari, eram fotógrafos e músicos – entre outras coisas - e eram assim: divertidíssimos. Aqueles dizeres, mera corruptela do private joke que invertia sílabas na gíria de iniciados do bairro, dizendo em código lerfá-mú lhobagu para falar “vamo fumá um bagulho?”, vinham sendo ingenuamente repetidos por autoridades e pessoas públicas, disseminando o uso da cannabis sem nenhuma intenção - para a alegria dos grafiteiros e doidões locais.
Acima, Rogério Fornari (à esquerda) e Guilherme Jardim (à direita).
Ao centro, Paulinho (Paulo Futura), na época fotógrafo e outro sócio do estúdio.
A foto foi usada como indicativo na estrada para uma festa na serra de Petrópolis-RJ.
Ao centro, Paulinho (Paulo Futura), na época fotógrafo e outro sócio do estúdio.
A foto foi usada como indicativo na estrada para uma festa na serra de Petrópolis-RJ.
Em 1981, pegando ônibus num belíssimo dia de sol, encontrei Rogério, que se auto-intitulava “freak” (e direis: como não?) portando um soturno guarda-chuva preto. Diante do meu espanto, ele riu e explicou: “- é a senha”.
Fiquei na mesma, até que ele contou que nas internas, há quase um ano, CELACANTO vinha provocando LERFÁ-MÚ trocando desafios sob forma de grafite nas paredes dos banheiros masculinos da PUC, onde ele também estudava. Depois de muitos acordos, travados por escrito e sem se verem, marcaram um misterioso encontro num dos cruzamentos mais barulhentos e movimentados do Rio: esquina da Av. Nossa Senhora com Figueiredo de Magalhães, em plena Copacabana. Para se identificarem mutuamente, nada como improvável guarda-chuva.
Nunca soube o resultado político deste duelo, mas sei que Rogério, como bom freak que era, partiu anos depois para uma vida alternativa num sítio no interior de Minas. Em estilo compatível criou uma banda de rock e tratou de arrebatar a rádio local com suas composições gravadas num porta-estúdio, abiscoitando todos os festivais de música das proximidades. Sempre lerfando mú, é claro.
Já o Guilherme era a personificação da contracultura com um mix pós-moderno: enquanto sabia tudo de Jimi Hendrix, Johnny Winter e Rolling Stones – motivo de meu fascínio – já pilotava um TK 85, um computador pessoal pré-histórico, ouvindo Devo e Kraftwerk ou jogando space invaders. Os amigos que o conheceram – esta quem vos narra entre eles, já inoculada da technomania gamer por contágio - sabem que ali estava um transgressor nato, criativamente embebido na cultura pop. Em outras palavras, um sujeito da pá-virada.
Acima, Guilherme Jardim, Luciana Araujo [Lumyx] e Ricardo Camillo em foto de divulgação da banda.
(foto: Flávio Colker).
(foto: Flávio Colker).
Depois de um tilt, o tal computador provocou até a composição de “Choveu No Meu Chip”, nosso sucesso meteórico com a banda ELETRODOMÉSTICOS*, já nos anos 80, onde o mesmo Guilherme era guitarrista e eu, tecladista num Korg Poly-800. Muito antes dos laptops, smartphones e outros gadgets, a canção de inspiração visionária – agora é fácil ver – narrava uma verdadeira tragédia informática da perda de todos os arquivos, profetizada em hilários playbacks new wave que fazíamos no programa do Chacrinha, Xuxa e afins enquanto o público ainda mal sabia o que afinal era um chip. Um grafite musical, a mesma atitude teaser – e o agente provocador entrava novamente em ação. Mas isso é outra lenda urbana.
*Almanaque dos Anos 80, pág. 139, em “Os Intocáveis”.