27.2.12

O Cinema, o Sonho e a Invenção de Selznick


Enquanto escrevo, o Oscar 2012 está rolando solto na Califórnia. Dentre os concorrentes, dois filmes são encantadoras homenagens ao CINEMA, escrito assim com letra maiúscula, esse que também é conhecido como Sétima Arte. Tanto "O Artista" (The Artist) do diretor francês Michel Hazanavicius, como "A Invenção de Hugo Cabret" (Hugo), de Martim Scorcese - um de meus diretores prediletos - são filmes passados na França e que contam a história do cinema, contribuindo para ensinar e cativar as novas gerações acostumadas ao You Tube e que não fazem idéia de como tudo começou. E de quebra, acabam emocionando criaturas que ainda sentem que cinema é a maior diversão. Como eu, por exemplo. Porque são declarações de amor à essa arte que reúne tantas outras, e nos oferece sonhos de sonhar acordado. 

Numa época em que a tecnologia nos apresenta mais um novo salto, com o desaparecimento definitivo da película, substituída pelo processo digital em todas as etapas, ambos os filmes falam com ternura sobre o cinema mudo. E também de como artistas produtivos foram atingidos por transformações da indústria do cinema testando suas capacidades de adaptação. Em "Hugo", a Primeira Guerra afeta a carreira de George Méliès, cineasta ativo entre 1890 e 1920 e pioneiro da ficção científica (com A Trip to the Moon, de 1902). Em "O Artista", é a invenção do cinema falado que faz a triagem dos mais aptos à sobrevivência, contada em metalinguagem por um "falso filme mudo" cheio de adoráveis citações cinematográficas. Ironias da história: a música - cuja indústria também vem sofrendo seus baques por conta da era digital - é fundamental para dar todo colorido dramático nos dois filmes, e em especial à narrativa de "O Artista". 

Mas se há um verdadeiro artista aqui é o "inventor" d'A Invenção de Hugo Cabret: o americano Brian Selznick, que escreveu e ilustrou o livro de 526 páginas que deu origem ao filme.

É surpreendente como seus preciosos desenhos em grafite já são praticamente um storyboard completo para o filme. Toda a magia da história contada por Scorcese com efeitos 3D, belíssima fotografia, longas tomadas com incríveis movimentos de câmera e ótimos atores já está lá no livro. 

Foi Selznick, ganhador do prêmio Caldecott em 2008 e também autor de outros livros, quem teve a sacada de inserir em seu conto a história de George Méliès, uma idéia surgida ao assistir A Trip to the Moon muito tempo antes (veja: parte 1/ parte 2 / parte 3), como conta em seu próprio site e nesta longa entrevista em 15 partes onde revela detalhes da criação e que detestava esportes quando criança. A época onde se passa a narrativa foi deliberadamente pré-digital: "(...) Quis ambientar minhas histórias em um mundo onde não havia celulares, e, ao mesmo tempo, relacionar alguns dos temas básicos às crianças de hoje." - diz o autor.


Sobre seus desenhos trabalhados com lápis HB em escala minúscula, algumas vezes com lupa - 7,5 x 12,5 cm - e que são ampliados depois - conforme descreve numa entrevista para Ed Vulliamy na matéria para o The Guardian (leia mais aqui), Selznick diz: "Parte do que eu busquei foi conseguir o tom do cinema francês antigo em preto e branco. Havia uma riqueza de texturas no cinema dessa época". Os recursos de ampliação e hachura são "uma maneira de alcançar um certo tipo de sombreamento que busco. Gosto de desenhar a luz, mas é claro que, para isso, você desenha escuridão. Sempre usei a hachura; tenho uma cópia que fiz aos 10 anos de um anjo de Da Vinci, e é proto-hachura."

Como em todas as artes, a era digital também afetou o processo de trabalho dos ilustradores. "As pessoas usam os computadores mais e mais, algo que apaga a mão do artista. Eu quis fazer algo com o qual fosse possível ver a mão do artista. Quis estender ao máximo o que se pode fazer com a tecnologia do livro. O livro é autêntico, e eu quis utilizar a tecnologia do livro para alcançar autenticidade. Estou interessado no ato de virar uma página, de contar uma história avançando fisicamente. Nos livros ilustrados você vira a página no ritmo que bem quiser; você se torna a força motriz por trás da narrativa."

Bom contador de histórias, Selznick não poderia deixar de ser mais um amante do cinema: "Eu quis também recriar a experiência de um filme na virada de páginas - refletir sobre como Hitchcock e Truffaut viravam páginas com suas câmeras". Afinal, "alguns dos melhores livros dizem respeito a livros, e alguns dos melhores filmes são sobre filmes. Aqui temos um livro que celebra o cinema e agora um filme que celebra os livros".

E por falar em Hitchcock, Scorcese também brincou de aparecer em seu próprio filme "Hugo", discretamente e quase despercebido. Descubra a cena se for capaz. Respeitoso à obra de Selznick, o diretor distribuiu exemplares do livro no set de filmagem, para que todos entendessem o objetivo das tomadas. E o Oscar de melhor direção de arte já foi para... Dante Ferreti, o designer de produção que já havia dito a Selznick: "Eu simplesmente fiz tudo o que você desenhou." Nem precisava dizer.

Falando um pouco mais sobre a vida de Brian: ele já lançou o livro The Hugo Movie Companion,  o um making of do filme, com entrevistas de toda equipe e do elenco, curiosidades e um ensaio de Scorcese sobre o nascimento do cinema.

A parada entre os dois filmes é dura, mas já tenho meu predileto. Admito que não assisti todos os concorrentes, mesmo já tendo "passado o rodo" em O Artista, Hugo, The Descendants, Dama de Ferro, Árvore da Vida, Cavalo de Guerra e Meia-Noite em Paris. A essa altura, Tom Cruise acaba de anunciar que o filme francês levou a estatueta.

Ok, ele venceu. "O Artista" é um excelente filme, mas meu Oscar particular vai para a dobradinha Brian Selznick e Martim Scorcese. Quer tirar a prova? Compre o livro, veja o filme.